O ex-deputado federal Jean Wyllys, que desistiu de seu mandato e se mudou para outro país por conta das inúmeras ameaças que recebia no Brasil, deu entrevista ao Público. Na última terça-feira (26), dois homens tentaram atirar-lhe ovos enquanto ele palestrava no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal.
Ao Público, o ex-deputado do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) falou do seu percurso na política brasileira e de como o “ódio destilado por Jair Bolsonaro e os seus apoiantes o obrigou a viver num cárcere privado”.
Confira abaixo alguns trechos da entrevista:
As ameaças fazem parte do seu dia-a-dia desde que entrou na política activa, como deputado federal em 2011. O que é que foi diferente desta vez?
Houve dois factos especiais: o impeachment de Dilma [Rousseff, ex-Presidente], que me colocou no protagonismo da defesa da democracia e do Governo dela – o que intensificou o ódio antipetista contra mim. Embora eu não seja do Partido dos Trabalhadores [PT], e fizesse oposição ao PT, oposição à esquerda, fui identificado publicamente pelas forças antipetistas como um “petista”, porque estava a defender um governo democraticamente eleito e defendendo uma mulher honesta, que estava a ser deposta por uma fraude e por um ladrão, que se encontra na cadeia, que é Eduardo Cunha. Isso intensificou a campanha difamatória contra mim, que tinha o objectivo de me fragilizar socialmente, de me colocar em risco.
E no ano passado, quatro dias depois do meu aniversário, Marielle Franco foi executada por forças paramilitares, por máfias que controlam territórios no Rio de Janeiro. Isso fragilizou-me por completo e percebi que as ameaças poderiam concretizar-se.
Entrei com um pedido de medida cautelar, porque o Governo brasileiro não fez nada. Fiz denúncias à Polícia Federal, que resultaram em cinco inquéritos meramente protocolares, que não produziram nenhum resultado. Entrei com um pedido de medida cautelar à Comissão Inter-americana de Direitos Humanos, apresentei todas as provas, e a comissão, que é idónea e respeitada internacionalmente, concluiu que a minha vida corria grave risco, e exigia do Estado brasileiro que desse uma resposta.
Antes de emitir o documento, a medida cautelar interrogou o Governo brasileiro sobre as ameaças e sobre a minha segurança. O Governo teve a pachorra para responder que eu não corria risco por causa da homofobia a que eu me referia – e colocou homofobia entre aspas, como se fosse uma invenção minha ou como se o Brasil não fosse o país onde mais se mata pessoas da comunidade LGBT – e que eu estava tão seguro que até havia feito campanha eleitoral.
É uma mentira, porque na verdade não fiz campanha. Eu não podia estar nas ruas. Quando estava nas ruas, eu era ameaçado, ou por pessoas que se cruzavam comigo e me ameaçavam no espaço público, ou recebia ameaças anónimas a dizerem para não ir a determinados lugares, porque seria agredido. Eu fiz uma campanha totalmente limitada, tanto é que a minha votação caiu de 145 mil para 20 e poucos mil. A Comissão Interamericana contestou o Estado brasileiro e exigiu a medida cautelar. O Estado não emitiu essa medida.
Quando fez a campanha, já previa sair do Brasil?
Não. Quando fiz a campanha, estava desgastado emocionalmente, mas ainda não pensava em sair. Pensava em desistir, mas não sair. Eu estava num nível de exaustão emocional, de medo, de ansiedade, de insegurança, por conta de uma vida ameaçada e restringida. Eu vivia em cárcere privado. Como é que se pode viver num lugar onde se vai a um restaurante e se é insultado por uma pessoa que lhe chama de pedófilo ou reproduz outra das mentiras que recebeu por WhatsApp? A decisão de sair do país veio logo depois da não-resposta do Governo ao pedido de medida cautelar.
No dia em que tomou posse como deputado pela primeira vez, havia familiares de outros deputados a quererem tirar fotografias consigo por causa da sua popularidade como vencedor do Big Brother, em que assumiu a sua homossexualidade perante milhões de pessoas. O seu percurso teria sido possível no Brasil de hoje?
O Brasil mudou muito. Em 2005, o Brasil estava em ascensão, um país em desenvolvimento, com prestígio no mundo. Era o início da era Lula, o país estava bem economicamente. Esse ambiente foi propício a acolher num reality show uma pessoa como eu, em convertê-la em protagonista do programa. Um rapaz que vem da pobreza, do interior, da Bahia, gay, professor, que não é bonito, que não tem as características dos modelos… Ao mesmo tempo com características com que o povo brasileiro se identificava naquele momento.
Havia um traço entre mim e Lula. Se alguém pode falar em meritocracia, somos nós. Ele, um menino que saiu do Nordeste com a mãe, e foi morar na favela de São Paulo, se torna metalúrgico, lidera as greves. E eu que saio do interior da Bahia. Naquele momento, no espírito colectivo cabia a minha vitória, tanto é que ganhei o programa com milhões de votos. A minha vitória como deputado não teve que ver com o programa, porque eu me elegi muito tempo depois.
Quando venci o Big Brother, como não tinha aspiração em ser actor ou ser modelo, a minha curiosidade no programa era académica, eu retirei-me de cena. Trabalhei nos bastidores, era guionista da Rede Globo, não estava à frente das câmaras. E evitei ao máximo expor-me durante esse período. Quando fui eleito deputado, estava distante desse universo, tanto que a minha primeira votação foi muito baixa. Fui eleito por acaso. Mas quando cheguei à câmara, deixei claro que eu não iria estar no papel que talvez esperassem de mim, que era o papel do gay exótico, da celebridade que se elege.
Eu entrei para fazer um trabalho, eu tinha uma história. Era activista dos direitos humanos, estava no movimento LGBT. Participei no Big Brother, mas antes disso tinha uma vida política, era professor universitário, actuava nos movimentos sociais, nas campanhas contra a sida. Tudo isso ameaça o sistema, porque não bastava eu propor um modelo novo de gestão de mandato, eu tinha um orgulho da minha homossexualidade. E é óbvio que, quando você se torna um modelo positivo de referência da homossexualidade, você contraria as instituições que lucram e se sustentam a partir da homofobia: as igrejas neopentecostais, poderosíssimas no Brasil, viram em mim um inimigo dos seus discursos. Começam aí os ataques e as ameaças.
Então foi essa parte do Brasil que passou a conhecer o Jean e não gostou…
O Brasil gostou da minha actuação. Mas o que aconteceu foi que as instituições que não queriam um homossexual nessa posição, e as forças políticas que desejavam que o Brasil deixasse de ser o Brasil que o Lula construiu, decidiram destruir essa figura que eu era. Eu fui o laboratório de algo que depois foi implementado com muito mais força e financiamento na última campanha. O teste da destruição da reputação foi feito comigo.
Durante as eleições, usaram contra [o candidato do PT, Fernando] Haddad, contra Manuela [D’Ávila, candidata a vice-presidente], e contra os demais candidatos. Essa intoxicação por mentiras é a nova forma de influenciar os processos eleitorais. Levar informações específicas a grupos que têm determinados preconceitos. Quando as pessoas perdem os seus empregos, quando perdem o poder de compra, quando os seus privilégios são perdidos de alguma forma, quando vêem certas hierarquias serem quebradas, isso gera um sentimento de medo e insegurança. E isso pode ser conduzido contra determinados grupos, eleitos como responsáveis por esse estado de coisas. Criam-se inimigos públicos. E aí é muito fácil dirigir o ódio e o medo a pessoas que já são alvo de preconceito.
No caso do Brasil, foram os homossexuais. O que deu a vitória a Bolsonaro foi a homofobia. Ele não apresentou um programa de governo ao país, não participou em nenhum debate, estava há 30 anos no Parlamento e não aprovou um projeto de lei. Esse sujeito venceu as eleições porque passou a proferir publicamente, através dos novos meios de comunicação, preconceitos e a culpar determinados grupos por um sentimento de medo que tomava o povo brasileiro, diante da crise econômica que vivíamos.
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